terça-feira, 26 de novembro de 2013

A Casa

      (Mais um texto feito em parceria com minha amiga Maria Eloise Albuquerque)                                                 

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     “Se vir ou ouvir qualquer coisa, saia correndo imediatamente.” Foi o conselho que ouvi da minha vó quando tinha oito anos. Na verdade, este foi um segundo conselho. O primeiro foi: “Nunca atravesse os portões daquela casa”. Eu deveria ter escutado minha vó desde o primeiro alerta, pois, mesmo agora, já com vinte e sete anos, não consigo esquecer aquela maldita música, aquela visão ou mesmo aqueles olhos… (Maria Eloise.)
   É bem normal que moleques se desafiem para provar quem é o mais corajoso. Tipo apertar a campainha dos vizinhos e sair correndo. Também passei por isso. Mas naquela cidadezinha a história era outra. Os desafios eram quebrar janelas, assustar os bichos ou invadir casas. Coisas de pequenos vândalos. E eu estava entre eles. “Duvido você quebrar aquele vidro”, diziam. Alguém ia e quebrava. “Vocês viram?! Acertei em cheio!” Todos saiam correndo e rindo dos berros do morador. “Seus moleques filhos-da-mãe! Tomara que a Mulher das Bonecas pegue vocês!”. “Duvido você estourar essa bombinha no meio daquelas galinhas”, diziam. Alguém ia lá e estourava. “Haha! Vocês viram quanta pena voando?” Todos saiam correndo e rindo dos berros do dono das galinhas. “Malditos vândalos! Venham aqui, seus covardes! Tomara que a mulher da casa da colina pegue vocês!” (Maria Eloise)
    “Duvido você entrar na casa da colina”, disseram para mim. (Maria Eloise)
    Entenda: não podia simplesmente dar para trás. Eu era tido como o mais ousado e corajoso dentre eles. E entrar naquela casa, nosso pesadelo infantil, seria a prova maior. “Não é você que vive dizendo que não acredita mais nessas histórias bobas? Pois então vá e entre na casa da mulher das bonecas de noite e sozinho!”, disseram, praticamente me empurrando em direção à maldita residência. (Beatriz Góes)
   A casa caiada de dois andares parecia se sustentar sobre si mesma à custa de feitiço. Era o que sempre contavam nas histórias. Revirei os olhos ao atravessar o portão enferrujado, rezando para que ela somente não desabasse enquanto eu estivesse lá dentro. A casa parecia me vigiar desdenhosamente, desafiando-me a desbravá-la, como pretendia. Vi um vulto branco passando rápido por uma das janelas ao mesmo tempo em que uma rasga-mortalha piou estridentemente no céu. Ofegante de susto dei um passo para trás. A habitação parecia ainda mais sombria sob a fria luz do luar… Mas eu não podia permitir que minha neurose infantil tomasse conta e me fizesse correr como um cachorrinho assustado para o colo da vovó. Já tinha treze anos. Estava mais que na hora de superar aquele medo estúpido e infundado. Fora minha imaginação covarde que plantara aquele vulto na janela. Respirei fundo e entrei. (Beatriz Góes)
   Fedia à mofo, serragem e ferrugem salgada dentro da casa. A única luz era a que entrava pelas janelas. A porta gemeu quando cautelosamente a empurrei, de mãos trêmulas. Deixei-a escancarada e adentrei mais na casa. Assim que pisei no corredor principal, uma melodia começou a tocar. Era doce e repetitiva, vinda não de um aposento específico, mas da casa inteira. Como se esta fosse uma enorme caixa de música viva. O meu coração começou a bater em disparada contra o peito, louco para fugir dali. (Beatriz Góes)
   Foi quando prestei atenção em outro som. Um insistente bater de peças de madeira oca soava por trás da melodia. A reação natural de sair correndo abandonou meus pensamentos, dando lugar a uma curiosidade medrosa. Temeroso, fui em busca da origem daquele segundo som me esgueirando pelas sombras – até que cheguei numa sala. Uma sala cujas estantes estavam repletas de brinquedos. Pelúcias, bonecas e marionetes. Todas cobertas de pó e com algumas manchas negras em torno dos olhos, das bocas ou dos pulsos. Não distingui o que era e, indiferente, continuei a correr os olhos pela sala até que reconheci uma antiga cadeira de balanço na escuridão. Era de lá que vinha o bater de madeira oca. Agora acompanhado do rangido da madeira balançando. (Maria Eloise)
A melodia, o som da madeira, o ranger da cadeira de balanço. Tudo combinado formava uma sinfonia aterrorizante, onde faltava apenas a voz. E ela veio. Um “lálálá” no mesmo ritmo que ecoava pala casa inteira. Como se ninasse uma criança. Tapei os ouvidos e deixei escapar um pequeno gemido de agonia. A música parou. Um silêncio sepulcral caiu sobre aquela casa. Senti calafrios quando percebi que a dona da voz lentamente se voltava para mim. Por detrás dos cabelos negros e escorridos pude ver seus olhos injetados na pele cadavérica: eram olhos sem vida. Olhos de boneca. O pânico se estampou em meu rosto quando vi as marcas de linha em seu pescoço e ouvi o convite sair de seus lábios. “Quer brincar, meu pequeno?”, ela disse, oferecendo para mim as marionetes penduradas em seus dedos. (Maria Eloise)
Os olhos dos bonecos, diferente dos dela, exprimiam terror. Só então notei a semelhança com os outros brinquedos. Os olhos de todos eram humanos e, as tais manchas, eram sangue. Sangue seco que antes havia escorrido dos olhos, bocas e mãos das crianças que ela havia sequestrado. (Ambas)
Sem pensar duas vezes, saí correndo daquele lugar maldito com as palavras da minha vó ecoando na mente: “Dizem que quem olha nos olhos dela, é perseguido por eles por toda a vida. E quem escuta seu ninar nem nos sonhos tem paz.” (Ambas)
Ela tinha razão. (Maria Eloise)



                                                                              - Beatriz Góes Cruz
                                                                              - Maria Eloise Albuquerque S. 


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Comunhão de Bens







Olhos vítreos a encaravam do chão da sala de jantar. Aquele filho da puta cretino manchava todo o carpete com seu sangue imundo. Aquilo nunca sairia… Suspirou, exasperada, e expulsou aquela preocupação da mente. Sua vó costumava dizer que se preocupar demais após comer causa indigestão. Não queria isso. Mas que estava indignada por aquele desgraçado estar sujando seu precioso carpete, depois de ter lhe traído com mais uma daquelas vadias de esquina, não podia negar. Levara muito tempo para encontrar uma cor que combinasse com a parede…
De qualquer modo, talvez aquilo não fosse mais problema dela. Já escutava as sirenes se aproximando e sabia que eram para ela; não era paranoica… não muito. Mas sabia que os imprestáveis dos vizinhos haviam ligado, provavelmente temendo o pior depois que a “louca e desmiolada” socialite e seu respeitável marido advogado silenciaram-se após o homem gritar: “Você é louca?! Olha o que fez! Solta essa faca!”. Sim… tinha quase certeza que fora a última frase do marido que mais alertara aqueles filhos da puta invejosos e fuxiqueiros que eram seus vizinhos do andar de baixo. Um bando de vermes inúteis, os cinco que ali moravam. Ela nunca se intrometera em suas brigas familiares (e eram muitas); mas na dela, eles se julgaram no direito de chamar a polícia… Pois bem, pensou. Que assim seja. Os esperaria sentada, ali, na mesa de jantar, ao lado do pobre e finado marido.
Não sentia medo de ser presa. Tinha doutorado em Psicologia – não era uma dondoca como seus amados vizinhos supunham. Ia ficar bem. Na verdade, tudo o que sentia, era uma ponta de divertimento ao imaginar a cara dos policiais ao depararem-se com a cena do “crime”, ao verem que no peito, onde deveria estar um coração, só havia um buraco negro que vertia sangue como um vulcão expele lava. Talvez eles não descobrissem de primeira o que de fato havia acontecido – afinal, ela era uma dama da alta sociedade e sabia o quanto era deselegante ficar com o rosto lambuzado após uma refeição, mesmo que não tivesse ninguém por perto. Embora aquilo não fosse exatamente uma “refeição”… era muito mais que isso. Era uma comunhão.
Sim, uma comunhão. Pois, apesar do que parecia e do que muitos iriam dizer mais tarde, ela amava, sim, seu marido – amava tanto que chegava a odiá-lo por isso – e não suportou vê-lo com outras mulheres. Seu coração deveria ser dela, e somente dela. E era assim que seria agora, quisesse ele ou não. Ele havia lhe jurado diante do altar de Deus. Ela só estava pegando o que era seu de direito. Não queria dinheiro, apartamento ou uma pensão por mês, e nada dessas porcarias que se ganham num processo de divórcio; queria somente o seu coração.
Ouviu batidas fortes na porta e uma voz grossa do outro lado, intimando-a a abri-la em nome da Lei. Eles haviam chegado. Sorrindo cinicamente, levantou-se lentamente e com sua elegância de costume foi desfilando até a porta da frente, cantarolando o refrão de A Little Piece of Heaven, do Avanged Sevenfold, e que era, ironicamente, uma das músicas favoritas do marido…
--- “Você acha que acabou, mas acabou de começarMas, baby, não chore… Você tinha meu coração, pelo menos a maior parte do tempo…”.


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Tem noites em que sou assim mesmo... tem músicas que simplesmente me aliviam, fazendo sair em forma de lágrimas uma parte do que prendo de mim, e que ás vezes nem eu mesma sei explicar...

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Um desenho e uma música






           Minha amiga Maria (a mesma que fez aquele poema comigo) fez esse desenho hoje. E quando ela fez esses olhos, me lembrei imediatamente de um trecho da música "Camila Camila" (Nenhum de Nós): "Havia algo de insano naqueles olhos / Olhos insanos / Os olhos que passavam o dia a me vigiar, a me vigiar... oh..."



segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Vestígios de um Duelo



(Isso não é autoria só minha. Fiz em parceria com uma amiga: Maria Albuquerque)


                                  



                                          De cima um olhar frio
                       Em baixo um olhar suplicante
                       Aqui dentro o ar é sufocante
                       Lá fora a noite é um pulmão ofegante


                       Sangue que sobe pela garganta
                       como lava borbulhante do vulcão
                       bloqueando qualquer suspiro de vida
                       e despejando-se pelo chão


                       O luar refletido no peito suado 
                       que buscava no ar impregnado
                       oxigênio para se manter


                       Depois do duelo travado
                       depois do suor e sangue derramado
                       só há um corpo vivo para a lua ver.
                                     

A Campina



 Ela demorou a abrir os olhos, mas, quando abriu,não reconheceu o lugar em que se encontrava. Estava deitada na grama, era capaz de senti-la sob sua pele, e encarava a copa de muitas, com o sol passando pelas folhas fazendo com que seus olhos ardessem. Ela ouvia também o som de alguns pássaros, mas estes pareciam tão distantes que mais pareciam ser mais a sombra de um eco, como um som ambiente; até onde sua vista alcançava, não via pássaro algum. Não via movimentos em nenhuma direção; nem o vento parecia soprar ali.
 O lugar parecia-lhe estranhamente familiar, como se o tivesse visitado alguma vez na infância mas que se havia esquecido de sua existência. Como havia ido parar naquele lugar que lhe era estranho mas, ao mesmo tempo, tão familiar? Essa pergunta sem resposta a empertigava.Tudo o quanto lembrava era de um cegante clarão branco e de um grito - um grito de homem. Mas o resto... nada. A escuridão plena e esmagadora. Até que acordou naquele lugar, naquela pequena campina no meio do nada em que nenhum ser vivo, além dela, parecia habitar. E mais, que vestido era aquele que usava? Não lembrava de ter um vestido de seda branco e comprido daqueles em seu guarda-roupa...
 Tomada por uma angústia repentina, levantou-se do chão em que até o momento estivera sentada, somente confusa, e começou a andar nervosamente em círculos. Havia se dado conta de outras coisas de que também não se lembrava, coisas mais importantes do que as peças do seu guarda-roupa. Qual era seu nome? De onde viera e como fora parar ali? Tinha família? De quem era o grito de qual se lembrava tão nitidamente? O que fora aquele estranho clarão? Quantos anos tinha? Alisou, exasperada, seu cabelo acaju que já era, de qualquer maneira, liso. Ela não conseguia, não conseguia lembrar!
 Parou de andar em círculos depois do que lhe pareceram horas, e se jogou na relva macia, com um suspiro frustrado. A luz não parecia ter mudado desde a hora em que abriu os olhos e constatou que estava num lugar desconhecido, mas ela tinha a nítida sensação de que havia se passado bastante tempo... Talvez fosse só impressão mesmo, quem sabe. Ficou novamente encarando os raios de sol passando por entre as copas das árvores, sem pensar em nada. Não que essa fosse sua intenção. Sua mente simplesmente se perdeu enquanto analisava os raios solares. Uma parte dela sabia, talvez instintivamente, que quando você para de pensar tanto em algo, quando para de tentar lembrar desesperadamente, a lembrança lhe vem naturalmente, quando menos se espera.
 E foi o que lhe aconteceu.
 Num segundo, contemplava os raios de sol; no outro estava dentro de um carro. A estrada - pelo menos era o que parecia - estava escura, e parecia passar como um borrão diante de seus olhos; o carro estava em alta velocidade. Dentro do carro, ao seu lado, no banco do motorista, havia um homem lindo, que parecia possivelmente bêbado - seu namorado, lembrou, com uma ponta de vaidade. O refrão de "Smells like teen spirit" tocava às alturas. E então, de repente, grandes faróis surgiram quase que imediatamente à sua frente, e uma buzina alta, que sobrepujou o a voz de Curt Cobain, soou ensurdecedora. Um caminhão de carga, surgido sabe Deus de onde. Ouviu o grito do rapaz, mais claramente, chamando um nome, provavelmente o dela própria: Luce. E depois, um barulho ensurdecedor e o nada. O nada escuro e impenetrável.
 Entendeu então, com um comichão esquisito na boca do estômago, como havia parado ali, embora, então, não soubesse, exatamente, onde era "ali". Tudo o que descobrira naquela breve lembrança foi que havia sofrido um acidente de carro. E que estava morta.